A pesquisadora Doutora Mariangela Hungria entrou para a história ao se tornar a primeira mulher brasileira a receber o Prêmio Mundial da Alimentação, considerado o “Nobel da Agricultura”. Com uma carreira de mais de quatro décadas dedicadas à pesquisa de microrganismos que substituem fertilizantes químicos, seu trabalho na Embrapa Soja está há anos revolucionando práticas agrícolas no Brasil, além de apoiar o posicionamento do país como líder mundial em tecnologias sustentáveis para a produção de alimentos.

Em entrevista exclusiva ao Agrishow Digital, a pesquisadora conta que não sabia estar participando da concorrência do prêmio. “Eles me chamaram numa vídeo conferência e achei que estavam me convidando para uma palestra. Eu já fiquei eufórica porque era uma oportunidade incrível de poder falar do nosso trabalho”, conta. Quando finalmente revelaram que ela havia ganhado o prêmio por unanimidade, a emoção foi avassaladora. “Comecei a chorar, porque eu nem sabia que eu estava sendo candidata”, explica.

Mariangela é a décima mulher no mundo e a primeira brasileira a conquistar esta honraria, sendo a quarta pessoa do país a receber o prêmio. Antes dela, apenas três brasileiros haviam sido laureados: Alysson Paolinelli e Edson Lobato em 2006, pelo incentivo à agricultura tropical brasileira na evolução da oferta de alimentos no mundo, além do presidente Lula em 2011, que dividiu o prêmio com ex-presidente de Gana, John Kufuor, pelos esforços no combate à fome através do programa Fome Zero.

Uma trajetória marcada por desafios: a inspiração e a força das mulheres

A paixão de Mariangela Hungria pela ciência começou ainda na infância, fortemente influenciada por sua avó, professora de ciências, que a incentivava lendo juntas livros de ciências e realizando experiências no quintal de casa.

“Quando eu tinha 8 anos, ela me deu um livro da vida de microbiologistas. No dia seguinte, falei: ‘Ah, vó, eu quero ser microbiologista'”, relata. Pouco depois, ao ler a biografia de Marie Curie, descobriu que poderia seguir o caminho da ciência mesmo sendo mulher: “Nossa, existe uma mulher cientista, existiu, eu posso ser também”, relembra.

Hungria não queria ir para área médica, por isso, sua decisão de cursar agronomia veio da vontade de combinar a microbiologia com o desejo de ajudar a combater a fome no mundo. “Minha avó ajudava muito as pessoas que iam até em casa pedir por comida. Então eu falava que eu queria ajudar de alguma forma a não ter pessoas no mundo passando fome“, conta.

No entanto, o caminho não foi fácil. Na década de 1970, a agronomia era uma profissão “extremamente masculina e machista”, como ela mesma define. Além disso, seu interesse por biológicos contrariava a corrente dominante da época.

“Na faculdade eu fui mãe por acidente. Então eu era o pacote super improvável de dar certo na vida porque eu não tinha família com recursos, não tinha família no agro, eu era mulher, eu era mãe de duas crianças quando terminei a faculdade, uma ainda tinha necessidades especiais, e queria trabalhar com biológicos, que ninguém acreditava naquela época”, recorda.

Apesar de todos os obstáculos, Mariangela nunca considerou mudar de área. “Eu só ouvia nãos, que eu nunca ia dar certo. Eu só tinha feito as escolhas erradas na vida. E eu acho que esse prêmio foi muito pela resistência, resiliência e perseverança“, pontua.

A revolução dos biológicos na agricultura brasileira

O trabalho desenvolvido pela Doutora Mariangela na Embrapa Soja, em Londrina, concentra-se no processo de fixação biológica de nitrogênio, que permite às plantas obterem este nutriente essencial sem a necessidade de fertilizantes químicos. Esta tecnologia tem transformado a agricultura brasileira, tornando-a mais sustentável e economicamente viável.

“O fertilizante nitrogenado é o mais difícil de ser conseguido, porque ele é o que mais envolve energia para síntese. Além disso, implica na emissão de N2O, que é um gás de efeito estufa com alto poder poluente”, explica a pesquisadora. Outro problema é que as plantas não aproveitam bem os fertilizantes químicos, com uma eficiência de uso de no máximo 50%.

Em contraste, o processo biológico desenvolvido por Mariangela é resultado de “milhões de anos de coevolução das bactérias com as plantas”, fornecendo nitrogênio diretamente para a planta “sem perder, sem poluir rio e água, sem emissão de gases de efeito estufa”, explica a pesquisadora.

Os resultados são impressionantes. Apenas na última safra de soja, o uso de biológicos em substituição aos fertilizantes químicos evitou a liberação de 230 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera. Para o milho, a tecnologia desenvolvida permite reduzir em 25% o uso de nitrogênio de cobertura, evitando a emissão de cerca de 236 kg de CO2 equivalente por hectare.

“No Brasil, o principal componente responsável pela emissão de gases de efeito estufa é a agropecuária, ao contrário da Europa e Estados Unidos, onde é o setor industrial e automobilístico. Então, diminuir essa emissão na agropecuária vai estar contribuindo muito para atingirmos as metas de redução de emissão de CO2”, destaca.

Impacto econômico e social para pequenos agricultores

Além dos benefícios ambientais, as tecnologias desenvolvidas por Mariangela e sua equipe têm um impacto econômico significativo, especialmente para pequenos agricultores. Em um estudo conduzido em parceria com a extensão rural do Paraná durante cinco anos, envolvendo quase 3.300 agricultores com propriedades de no máximo 50 hectares, o uso dos biológicos resultou em um retorno econômico de 111 dólares por hectare.

“Isso pra um agricultor que tem no máximo 50 hectares é a oportunidade de economizar, trocar um trator, ou colocar uma internet boa para que o filho dele fique mais na propriedade, não queira só ir para se mudar para cidade. É a oportunidade dele melhorar de vida”, enfatiza.

Mariangela ressalta que as tecnologias sustentáveis são acessíveis tanto para pequenos quanto para grandes produtores. De acordo com a pesquisadora, o que falta é o investimento em extensão rural para levar esse conhecimento técnico aos pequenos agricultores. “O pequeno agricultor precisa dessa ajuda de levar as tecnologias para ele, porque o grande agricultor paga consultores.”

A pesquisadora destaca que esse apoio é um investimento que beneficia toda a sociedade. “Em torno de 60 a 70% do que a gente come vem da agricultura familiar. Então, como que a gente vai achar que está fazendo apenas um favor ao levar o auxílio técnico a esses agricultores, se essa comida vai voltar para nossa mesa com mais qualidade, mais abundância, menor preço?”, reforça.

O papel crucial das instituições públicas de pesquisa

Um dos pontos mais enfatizados por Mariangela é a importância das instituições públicas de pesquisa no desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. “Todas essas tecnologias maravilhosas que nós temos, elas são frutos de trabalhos desenvolvidos por instituições públicas. E por que isso é importante? Porque a sustentabilidade não gera um lucro direcionado e de curto prazo“, afirma.

A pesquisadora explica que o setor privado, naturalmente orientado por resultados financeiros mais imediatos, tende a priorizar investimentos com retorno em prazos menores, o que pode limitar o desenvolvimento de pesquisas de longo prazo, como as que ela conduziu ao longo de quatro décadas.

Os resultados desse investimento público são impressionantes. “Só no caso da soja na última safra, a economia de fertilizantes nitrogenados deu uma economia de 20,5 bilhões de dólares pro Brasil. Só que é pra todo mundo, é pra pessoa que cultiva 1 hectare de soja ou pra que cultiva 800.000 hectares“, comemora.

Além da fixação biológica de nitrogênio, Mariangela cita outras tecnologias sustentáveis desenvolvidas por instituições públicas, como o plantio direto e o sistema de integração lavoura-pecuária, que beneficiam toda a sociedade.

O futuro da agricultura sustentável

Atualmente, Mariangela está focada na recuperação de pastagens degradadas utilizando microrganismos. “Hoje o nosso principal problema ambiental são as pastagens. A área que a gente tem com pastagens no Brasil equivale a 2,1 vezes a área com todas as culturas, e 60% ou mais dessas pastagens estão em um estágio de degradação, explica.

Segundo ela, o uso de microrganismos ajuda na recuperação dessas pastagens, devolvendo vida ao solo. “Um solo sem vida, sem microrganismo, não consegue nem fixar o próprio fertilizante. Então a gente vai recuperando a vida dos solos e vai fazendo os processos microbianos que contribuem para melhorar.”

O objetivo é aumentar a quantidade e a qualidade da biomassa produzida, permitindo maior lotação de cabeças de gado em áreas menores. “Tendo mais alimento de melhor qualidade, pode colocar todo gado em metade da área que hoje a gente tem, no futuro até em um terço da área, e pode liberar toda essa área para agricultura. Então a gente pode duplicar, até mesmo triplicar, a área com culturas no Brasil sem ter que derrubar uma árvore.”

Para Mariangela, a agricultura sustentável é um caminho sem volta, com vantagens econômicas claras. “Sistemas sustentáveis são mais resilientes, então a produção é mais equilibrada durante o tempo. E isso é muito importante, porque a pior coisa que tem para o agricultor é um ano produzir mais, outro ano não produzir nada“, comenta.

Ela também destaca que o Brasil é um dos líderes em tecnologias de agricultura sustentável no mundo, embora isso nem sempre seja reconhecido internacionalmente. “Às vezes a gente só fica com manchete lá fora que falam que a agricultura brasileira é horrível. E, infelizmente, nós temos maus agricultores e maus exemplos, mas vamos ter maus profissionais em todas as áreas. A grande maioria dos agricultores brasileiros são preocupados com sustentabilidade.”

Um exemplo para mulheres na ciência e na agricultura brasileira

Como primeira mulher brasileira a receber este prestigioso prêmio, Mariangela deixa uma mensagem inspiradora para jovens cientistas, especialmente mulheres, enfatizando que qualquer pessoa pode alcançar seus objetivos, independentemente do que outros digam:

“Infelizmente, ainda hoje as mulheres ouvem muito mais não do que os homens. E eu acho que eu fui uma campeã de ouvir nãos, que eu era improvável. Qualquer mulher, qualquer menina, qualquer jovem, vocês podem ser o que vocês quiserem. Vocês não devem se guiar ao que as pessoas falam que vocês seriam adequadas ou, pior, não capacitadas. Quem decide a sua capacidade, o que você pode ser, é você mesma.”

Mariangela reconhece o papel fundamental que outras mulheres tiveram em sua trajetória, especialmente sua avó e sua mentora científica, Dra. Joana Döbereiner. “O que teria sido da minha vida, da minha carreira, se eu não tivesse tido essas duas grandes personalidades femininas?”

Ela relembra como Dra. Joana, que teria completado 100 anos em 2024, foi visionária ao contratá-la apesar de suas aparentes “limitações”. “Eu tinha duas filhas, uma com necessidade especial, não tinha nenhum parente morando perto. Ela não viu essas limitações em mim. Ela viu o amor, a dedicação que eu tinha à ciência.”

Por isso, Mariangela convida a uma reflexão sobre preconceitos no ambiente profissional. “Talvez se tivesse um homem ali com preconceito, não teria me contratado e hoje eu não estaria aqui ganhando um prêmio ou podendo falar bem do Brasil no exterior, falar da nossa sustentabilidade, sendo uma porta-voz de tanta coisa“, ressalta.

Um legado para a agricultura brasileira e mundial

O trabalho de Mariangela Hungria representa não apenas um avanço científico significativo, mas também um exemplo de como a pesquisa pública pode transformar a agricultura, tornando-a mais produtiva, sustentável e acessível a todos os tipos de produtores.

Sua história é um grande exemplo de que persistência, paixão e dedicação podem superar barreiras aparentemente intransponíveis. Ao mesmo tempo, destaca a importância de investir em ciência e tecnologia para enfrentar os desafios globais de segurança alimentar e mudanças climáticas.

Como ela mesma aconselha aos jovens cientistas: “Faça aquilo que você ama, aquilo que você acredita, que com certeza você vai vencer.”

O reconhecimento internacional de Mariangela Hungria com o Prêmio Mundial da Alimentação celebra suas contribuições individuais, mas também coloca em evidência o potencial da agricultura brasileira para liderar o caminho em direção a um futuro mais sustentável para a produção de alimentos em todo o mundo.

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