A agricultura itinerante — também conhecida como coivara, agricultura migratória ou agricultura itinerante de corte e queima — é um sistema antigo de uso da terra caracterizado por ciclos de cultivo em áreas novas ou pouco exploradas, seguido de abandono ou repouso da área, para que ocorra regeneração natural do solo.
Tipicamente, o processo funciona assim:
- O agricultor seleciona uma área de vegetação nativa ou floresta secundária.
- Derruba a vegetação e queima os resíduos (a prática da queimada) — isso proporciona nutrientes iniciais advindos das cinzas.
- Cultiva durante alguns anos, normalmente espécies de ciclo curto, como milho, feijão, arroz, mandioca ou outros, dependendo da região. A duração desse cultivo costuma variar de 2 a 3 anos, às vezes até 3-5 anos.
- Depois desse período, a área é abandonada ou deixada em pousio para recuperação natural, enquanto o agricultor passa a usar outra área nova para novo ciclo.
No Brasil, esta prática tem forte presença em regiões tropicais, especialmente na Amazônia, onde há abundância de vegetação original, solos muitas vezes pobres em nutrientes disponíveis e tradição cultural relacionada à coivara.
Benefícios da agricultura itinerante
Embora existam críticas e riscos associados, há vários benefícios — muitos menos citados — especialmente sob a perspectiva da sustentabilidade, da cultura local e de adaptação ao meio ambiente. Aqui vão os principais:
- Regeneração natural do solo
Por permitir períodos de pousio, o solo tem tempo para recuperar nutrientes, compactação, estrutura física e atividade biológica (micro‐fauna, fungos, bactérias). Isso ajuda a manter ou restabelecer fertilidade natural sem depender exclusivamente de fertilizantes sintéticos. - Uso de recursos locais e baixos custos externos
Agricultores itinerantes geralmente utilizam insumos que a natureza oferece (cinzas, restos vegetais) em vez de depender de adubos químicos caros, grande maquinário ou irrigação intensiva. Isso pode tornar o sistema mais viável economicamente para comunidades com menos acesso a capital ou crédito. - Encaixe cultural e social
Práticas como a coivara têm raízes profundas em comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas. São técnicas adaptadas de geração em geração, que carregam saberes sobre ecossistemas, floresta, clima, ciclos naturais. Preservar isso pode significar manter patrimônio cultural, diversidade de conhecimentos e modos de vida. - Diversificação de uso do território
Como o agricultor migra de área em área, e utiliza diferentes culturas, há uma certa rotação/variação nos locais de cultivo, o que pode evitar o uso contínuo e exaustivo de uma mesma parcela de terra. Isso pode ajudar a manter diversidade de plantas, evitar infestações generalizadas de pragas ou doenças, e reduzir erosão. - Adaptação a ambientes com condições adversas
Em locais onde o solo é pobre, a tecnologia/investimento é limitado, ou as condições climáticas são difíceis (chuvas irregulares, solo de baixa fertilidade), a agricultura itinerante pode ser uma estratégia mais resiliente do que sistemas intensivos que exigem muitos insumos ou infraestrutura. - Potencial de integração com práticas sustentáveis modernas
Há possibilidade de combinar itinerância com agroflorestas, sistemas agroecológicos, restauração de áreas degradadas, o que pode mitigar seus impactos negativos e potencializar seus benefícios.
Desafios e riscos
Para ter uma visão equilibrada, alguns dos principais problemas associados à agricultura itinerante:
- Desmatamento e perda de vegetação original: se a derrubada for contínua, sem períodos de recuperação suficientes, há risco de degradação permanente, perda de biodiversidade, erosão do solo e diminuição da matéria orgânica.
- Queimadas fora de controle: o uso de fogo para limpar áreas pode causar incêndios acidentais, poluição do ar e emissão de gases de efeito estufa.
- Limitação de produtividade: em comparação com sistemas agrícolas modernos intensivos, os rendimentos por hectare tendem a ser menores.
- Pressão legal e ambiental: leis ambientais, exigências de reservas legais, monitoramento, infraestrutura de fiscalização e proteção de florestas tornam essa prática menos “livre” hoje do que no passado. Isso pode criar conflitos com políticas públicas e com ações de conservação.
- Sustentabilidade a longo prazo: se os ciclos de pousio forem muito curtos (ou inexistentes), o solo não recupera bem; se a migração de áreas for intensa, pode haver sobrecarga de ecossistemas vizinhos.

O panorama no Brasil e implicações para sustentabilidade
- Na Amazônia, a agricultura itinerante ainda tem peso histórico e social. Ela está presente como forma de subsistência e está profundamente ligada às comunidades tradicionais. Entretanto, o avanço do agronegócio, da pecuária extensiva, de grandes obras, de estradas e das mudanças climáticas têm alterado radicalmente esse cenário.
- Políticas públicas, legislação ambiental e ações de conservação têm buscado equilibrar a proteção de florestas com o direito ou a necessidade de uso da terra por populações tradicionais. A ideia de “uso sustentável da terra” está cada vez mais presente nos debates.
- A sustentabilidade exige adaptações: garantir pousios mais longos, recuperação de solos, evitar queimadas descontroladas, uso de espécies nativas ou adaptadas, diversificação de culturas.
- Também importa considerar o potencial de agregar valor: produção de alimentos agroecológicos, mercados locais, certificações ambientais, incentivo a tecnologias de baixo custo que possam melhorar produtividade sem degradar.
Caminhos para o futuro
Agricultura itinerante é uma prática antiga, com raízes culturais e ecológicas fortes, que pode oferecer benefícios reais se bem manejada — especialmente em áreas tropicais, em comunidades com recursos limitados e onde outras formas de agricultura intensiva sejam inviáveis.
Para que ela seja sustentável no século XXI, algumas condições são essenciais:
- respeitar os ciclos de regeneração dos solos, garantindo pousios adequados;
- evitar ou monitorar cuidadosamente o uso do fogo;
- promover diversificação de culturas e integração de saberes tradicionais com inovações (sementes melhores, técnicas de cobertura, agroecologia, silvicultura);
- garantir que haja políticas públicas que deem suporte técnico, crédito, incentivos ambientais;
- avaliar impactos sociais, ambientais e econômicos locais.
A agricultura itinerante não deve ser vista como algo do passado ou ultrapassado, mas como uma prática que, se adaptada, pode contribuir para produzir alimentos de forma justa, preservando ecossistemas e respeitando comunidades.
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