A sucessão familiar nunca acontece de um dia para o outro. Ela nasce devagar, no silêncio do campo, no aprendizado passado de pai para filha, na rotina que mistura trabalho duro, amor pela terra e o desejo de continuar algo que começou muito antes dela.
A história de Érika Asami, produtora de atemoia em Marialva (PR), é um exemplo vivo de como a nova geração do Agro HF — especialmente as mulheres — tem transformado tradição em futuro, inovação e pertencimento.
1: Como começou sua história com o campo e com a produção de atemoia?
Minha história com o campo começou desde que nasci. Meus pais eram cafeicultores e a correria dos cuidados e das colheitas do café demandava a colaboração da família, fazendo assim a união com funcionários e diaristas. Então minha mãe sempre me levava quando ela ia misturar e amontoar o café no terreiro. Três anos depois veio meu irmão. Minha mãe precisava cuidar dele e também dos meus avós, na época com alguns problemas de saúde, mas nunca deixou de trabalhar no campo. E, conforme fui crescendo, meu pai me levava na roça. Ia na colheita, mesmo que fosse para estar junto com as mulheres que ali colhiam, levava marmita e ficava contente por estar com todos, pois era um momento de fartura. Todos cantavam, competiam colheita entre eles, faziam piadas e davam muitas risadas. Era gostoso ver meu pai feliz e todos felizes com a gente. Então fui criada e cuidada por todos eles. Ficava brincando e também ajudando entre os pés de cafés e, quando voltava na sede, era obrigação da gente ajudar a amontoar e cobrir os grãos que ficavam secando no terreiro. Eu ia crescendo e meus pais iam me ensinando o que poderia fazer para ajudá-los: fazer contagem de sacas de café, dirigir caminhonete, ficar de olho no tempo, porque, se chovesse, tinha que correr para carregar sacas de cafés e amontoar o café do terreiro e cobrir. Assim foi com meu irmão. Conforme fomos crescendo, o trabalho demandava a ajuda de todos como podia. Nossa família teve momentos de reconhecimento pela qualidade do café, tendo grãos premiados. Meus pais foram reconhecidos pela forma que cuidavam dos cafezais e dos grãos, e isso me fez despertar mais ainda o quanto podemos fazer a diferença mesmo sendo pequenos.
A atemoia entrou nesse meio tempo. Na região, houve um grupo de produtores que investiu em assistências particulares e na produção dessa fruta exótica e pouco conhecida na época aqui. Foi um desafio. Nos deparamos com um manejo totalmente diferente para nós. Com o tempo foram surgindo dificuldades no manejo, pois surgiram doenças que abortavam os frutos e matavam os pés. Meu pai continuou persistindo e hoje nossa produção tem 30 anos. Na época, quando tudo começou, eu era adolescente e meus pais faziam questão da gente dedicar aos estudos, então não ficava muito adentro da produção, porque se tratava de uma fruta delicada no manejo, colheita e comércio.
Alguns anos se passaram, fui fazer faculdade, trabalhei e morei em outra cidade por cinco anos. Formei em administração pública e, em seguida, retornei para Marialva. Passaram-se alguns meses e tive meu filho. Com o amparo da família, naquele momento percebi que meu destino seria a agricultura, mas era incerto, pois não sabia por onde começar mesmo sendo algo que já vivi. Meu filho me fez ver a família e o sítio com muito mais gratidão e significado. Tivemos altos e baixos no café. Meu pai disse que já fez tudo o que poderia ser feito pelo café, e, no auge do seu reconhecimento, decidiu arrancar os pés, dando espaço para a soja, milho e trigo. Mas a atemoia continuou e continua firme até hoje.
Arregacei as mangas e fui observando tudo que eu poderia fazer. Até então não sabia o que eu poderia fazer pela produção da atemoia. Era algo incerto, pois não vivia 100% na produção devido aos estudos, mas naquele momento eu estava 100% nela e tinha que começar por algum lugar: na colheita, na seleção, carregar caixas, controlar entregas, fazer a logística, emitir notas, contabilizar perdas e ganhos. Às vezes tentava ajudar no manejo e manter a organização de tudo que se referia à atemoia. Mesmo assim me sentia triste, pois parecia que não estava fazendo algo que pudesse ver brilhos nos olhos do meu pai. Minha gratidão por ele e minha mãe terem me recebido de volta no sítio me fez ter eterna admiração e respeito por eles. Então eu me esforçava muito para aprender e fazer certo. E até hoje eu aprendo muito, e a gratidão vai ser eterna. Por isso, meu começo na produção da atemoia mesmo foi há 18 anos e cada conquista que tive em minha vida foi graças a essa produção e à confiança que meus pais depositaram em mim.
2: Em que momento você decidiu continuar o legado da família?
Não houve um momento certo para continuar o legado. Tanto eu como o meu irmão sempre ajudávamos, não era uma escolha e sim mais que uma obrigação.
Mas, por pensar que seria uma obrigação, não me entregava totalmente. Eu chorava e me sentia triste, pois nada satisfazia meu pai. Fazia o que tinha que ser feito até eu perceber que o fazer tinha que ser algo do coração, amor e razão pelo que faz.
Com o tempo fui entendendo meu pai, descobrindo como demonstrar para ele que também consigo ajudar de diversas formas, assim como ele esperava de um filho. O tempo foi passando e, de forma natural, eu estava fazendo os afazeres da produção da forma que meu pai esperava. No sítio, até hoje, meu pai toma as últimas decisões, nada passa despercebido por ele e isso me deixa feliz, pois ele aprendeu a confiar em mim e a dar alguns poderes de decisão, desde que ele aprove no final.

3: Como é o seu trabalho na parte de comercialização e relacionamento com supermercados e atacadistas?
Minha comercialização e relacionamento só é possível pois crio vínculo com muitos produtores de todos os setores, e isso ajuda muito na indicação do meu produto, que antes era pouco conhecido e hoje tem muita procura. A venda é feita diretamente com compradores de grandes redes de varejo e atacadistas. Muitas vezes consigo ter contato direto com diretores e proprietários das redes supermercadistas, dando assim a oportunidade de demonstrar o verdadeiro valor de nossa fruta. Admiravelmente, nossas atemoias têm sido procuradas até para exportação devido à qualidade e comprometimento.
Meu relacionamento com as empresas é o mais transparente possível. Tenho que respeitar as exigências deles e, quando a exigência não condiz com minha produção, criando conflito com a ficha técnica, preciso explicar e convencer o porquê de não poder ser assim do jeito que eles querem. A atemoia tem variedades, tamanhos e formatos que variam dentro dela e isso não quer dizer que está fora do padrão, e sim porque são variedades existentes dentro dela. O consumo da atemoia hoje melhorou, mas é muito relativo, pois o comércio varia muito dependendo do cliente e da região.
Mas, em geral, eu penso que atrás de cada cliente existe um ser humano qualquer. Muitas pessoas têm medo de negociar com compradores sozinhas, sendo que, na verdade, elas não deveriam ter medo. Então, quando eu chego sozinha, algumas vezes sem jeito, coloco na minha cabeça que estou negociando com uma pessoa como eu. Então procuro ter empatia, simpatia e paciência. Algumas vezes nos deparamos com situações que devemos relevar. Devemos ser leves, tornar a negociação algo confiável, e isso posso dizer que é real.
Hoje em dia quase não preciso ir atrás de novos clientes, mas, felizmente, muitos vêm atrás de nós, pois veem nossas frutas nas bancas dos clientes que atendemos atualmente, despertando novas possibilidades de negócio. Estamos tentando melhorar nossa produção para suprir a demanda e criar novos vínculos. Somos muito gratos aos atuais parceiros e nossa prioridade atualmente é melhorar a quantidade de produção para atender nossos atuais clientes de forma 100%.
4: O que mudou na gestão com a sua entrada?
No começo de nossa produção, por não saber como era o consumo na região e afora, fazíamos a venda praticamente 100% para o Ceasa ou Ceagesp, com intermédio de barracões aqui da cidade e região. A venda para o Ceagesp ou Ceasa não era o problema, o problema era a desvalorização que tínhamos no preço da fruta, sem contar nas perdas que eram expressivas. A logística e o armazenamento eram de forma inadequada, prejudicando a qualidade da fruta, que não chegava apresentável até aos Ceasas, Ceagesp, supermercados, quitandas e atacadistas.
Quando comecei a levar a sério o que era a comercialização da atemoia, comecei a observar o entorno de nossa produção, observando a região, logística, economia e consumidores. Então resolvi mudar nosso cliente, focando no consumo regional. No começo foi muito difícil, pois por fora a atemoia não condiz com a doçura que ela tem. Foram muitas entregas de porta em porta, com preços baixos para que todos pudessem ter acesso à fruta e aprender a consumir e colocar a atemoia no dia a dia. Ela é rica em vitaminas e alguns benefícios na saúde, substituindo muito o consumo de doces industrializados. Foi realmente trabalhosa essa inclusão da atemoia nos varejos e atacadistas. Chegava a dar muitas frutas como prova, mas hoje temos o retorno de todo esse esforço, sendo hoje referência na produção e qualidade. Criamos prestígios entre os clientes que sabem da nossa qualidade, procedência e comprometimento com o cliente final.
Para entender melhor o futuro cliente, costumo fazer visita nas lojas deles e vejo como funcionam. Converso com funcionários do FLV como se eu fosse cliente do estabelecimento, especulo a venda de frutas exóticas, pergunto se não tem atemoia para vender — tudo na visão do cliente. Avalio a cidade e os bairros onde as lojas estão localizadas. Devemos entender sobre o consumo de frutas exóticas em determinadas localidades, pois nem todo mundo conhece e nem todo mundo consome. Então é importante entender o consumidor final, cada loja tem um público específico.
A gestão tem melhorado cada vez mais com todos da família juntos. Agora temos a visão comercial e de manejo caminhando lado a lado. O comércio só existe porque tem alguém ali cuidando do manejo — no caso, o meu pai, que tem a visão tradicional; meu irmão, que é agrônomo e tem a visão do manejo atual; minha mãe, que sempre esteve na parte de seleção das frutas; e os nossos funcionários, que são como família e estão presentes em todas essas etapas.
Então a minha entrada veio para praticamente centralizar nossas vendas para clientes da região, ou seja, 100% para o varejo e o atacado de forma direta. Quando digo direta, é direta mesmo: eu mesma me encarrego pela logística, assim sei como nossas frutas chegam aos centros de distribuições e depósitos de supermercados e atacados. Então, se houver algum problema, meu cliente vai resolver diretamente com a produtora. Sendo um problema de manejo, eu já repasso para meu pai e meu irmão; se for de classificação, eu repasso para nossos colaboradores, para minha mãe e para mim mesma.
Tudo foi possível através das redes sociais, mídia e plataformas. Então o que eu pude realmente contribuir foi com a minha facilidade de conexão com as pessoas. Desde aprender novos métodos de produção e comercialização, lidamos com pessoas como nós.
5: Ser mulher no agro ainda é um desafio?
Sim, para mim no começo foi muito difícil. Era tudo novo e as incertezas que tinha não transpareciam confiança, mas na verdade era o receio de estar ali no meio, que era quase 100% masculino — isso refiro a 18 anos atrás. Durante as entregas me deparava muito com mulheres, mas essas mulheres geralmente estavam ali escondidas, assim como eu, pois algumas vezes passávamos por situações de constrangimento.
Com o tempo fui aprendendo tudo sobre nossa produção, entendendo como funciona o comércio, negociação e logística. Comecei a lidar com situações de forma diferente. Com sabedoria e paciência conseguimos lidar com alguns problemas do dia a dia que envolvem pessoas que subestimam a mulher no agro.
Hoje em dia vejo que a mulher tem muito mais voz na agricultura, e isso me deixa feliz. Recordo do meu começo, não que hoje eu não passe por situações, mas eu soube relevar e ter certeza do que eu sou hoje. Então nada me faz tirar o meu valor.
O que eu posso dizer para as mulheres é que tornem esse desafio algo que possam conquistar. Cada mulher que está no seu cultivo tem a força, alegria, delicadeza, empatia e sutileza na produção e comercialização, e isso transparece muito o amor naquilo que estamos oferecendo ao nosso cliente final, como se eles vissem o rosto daqueles que produzem, e isso é muito importante e satisfatório para nós. Pois chego a presenciar tudo isso nas lojas quando estou vendo as pessoas comprando nossas frutas sem saber que a produtora está ali do lado. Fico cheia de alegria quando escuto: “Você não sabe o quanto essa fruta é gostosa”, “A atemoia desse produtor é muito boa”… Não tem dinheiro que pague esse feedback direto dos clientes.
A minha maior referência de mulher no agro sempre foi a minha mãe, que desde sempre dedicou à terra, com garra cuidou da família e estava sempre ali na lida, sem deixar faltar nada para todos. Ela sempre mostrou o quanto poderia fazer mesmo sendo mulher. Digo que ela foi e é o pilar de nossas conquistas.
6: Qual é o maior aprendizado que você leva do seu pai?
O maior aprendizado do meu pai é humildade, persistência, conhecimento e sabedoria.
Ele sempre foi uma pessoa observadora sobre tudo e grande leitor também. O conhecimento sempre esteve presente na vida dele. Passou por muitas dificuldades na agricultura, mas nunca desistiu, e isso nunca foi algo dito em palavras, e sim pelas atitudes dele.
Ele sempre disse pra mim:
“Se tem algo para fazer agora, então faça, nunca deixe para depois o que pode ser feito agora.”
“Errar todo mundo erra, mas tem que aprender com os erros.”
“Na natureza existem insetos, bichos, matos, até pragas por algum motivo na terra, então devemos usar elas a favor de nossa produção e nunca eliminar elas de forma 100%, e sim pensar como elas seriam úteis para a nossa produção.”
E o dito mais importante dele sempre foi:
“Valorizar os princípios da família, ter orgulho de nossa origem e quem somos, nunca esquecer tudo que passou um dia, nunca esquecer dos antepassados.”
Meu pai sempre foi uma pessoa simples e humilde, sem palavras difíceis e sem grandeza. Isso é algo que eu e meu irmão aprendemos. E é maravilhoso: a cidade toda conhece ele e, de alguma forma, ele proporcionou trabalho e felicidade nos cafezais. Hoje em dia ando na cidade e todos lembram daquela época com nostalgia. Alguns já se foram, mas o que meu pai me ensinou é que o legado vai muito mais além do que o trabalho na roça. É deixar algo positivo na nossa vida e na vida das pessoas. Isso me fez refletir muito, pois a coisa mais linda é saber lidar com as pessoas sabendo que todos são iguais, mas, para cada um, devemos saber ser e assim entender para tornar o trabalho leve.
Meu pai me ensinou a ter sabedoria sempre, diante das dificuldades ter calma. E, na hora da felicidade, que seja em família sempre.
7: Que conselho daria pra famílias que ainda não conversam sobre sucessão?
Muito difícil dizer como elas deveriam conversar sobre sucessão, cada família tem sua história. Mas, quando há um interesse real dos pais que seus filhos sucedam o agro, que eles deem uma oportunidade para os futuros sucessores a demonstrar o sentimento.
Pois eu passei por isso. Por mais que meu pai dissesse que eu e meu irmão seríamos sucessores um dia, nunca tínhamos a certeza de como iríamos lidar com isso. Mas, quando terminei a faculdade, minha ideia era trabalhar e morar em outro estado. Porém, Deus sempre escreve certo por linhas tortas, e eu estava grávida. Foi quando meu pai deu a oportunidade e a chance de um recomeço. Tive meu filho e criei com meus pais me ajudando sempre. Nesse meio tempo tive câncer, trombose e alguns outros problemas de saúde. E não saberia como lidar com essas doenças tendo a vida que um dia imaginei ter. Mas digo e repito: Deus sempre escreve certo por linhas tortas. Então eu decidi suceder a produção da atemoia juntamente com meu irmão.
O conselho que posso dar é que o agro está cada vez mais presente na vida das pessoas, muitos jovens retornando para o campo, e é o momento dos pais começarem a delegar responsabilidades, conversar e também ensinar, tornando tudo de forma leve para que seus filhos possam abrir seus corações. Digo isso pois tenho passado por isso também, e é uma fase muito importante. Onde os jovens têm muito a ensinar para a gente sobre informática e tecnologia, e nós ensinar sobre a tradição da lavoura e os princípios da família.
Então a razão do meu começo na sucessão foi pela minha família, a realização foi por mim e a continuidade será pelo meu filho e sobrinhos. Cada um traçando um lindo legado.
O agro floresce no momento em que menos imaginamos, quando vemos a gente já está vivendo ela.